CESVI Brasil - Centro de Experimentação e Segurança Viária

Conselheiro do Estado

Em junho de 2017, entrevistamos o Dr. Fabio Racy, como presidente do Cedatt – Conselho Estadual para a Diminuição dos Acidentes de Trânsito e Transportes.

14/12/2021
Em junho de 2017, entrevistamos o Dr. Fabio Racy, como presidente do Cedatt – Conselho Estadual para a Diminuição dos Acidentes de Trânsito e Transportes.
Vale a pena relembrar essa entrevista com um profissional que passou boa parte de sua vida dedicado à causa da segurança no trânsito brasileiro. Confira abaixo. 

Médico especializado em Medicina de Tráfego, o doutor Fabio Racy não se conforma com o uso da palavra “acidente” para caracterizar as batidas, capotamentos e atropelamentos que matam dezenas de milhares de brasileiros todos os anos. “Acidente é uma ação de deus, uma coisa totalmente inesperada. Não deveria se aplicar a uma ocorrência evitável, na qual os envolvidos geralmente tomam atitudes irresponsáveis ou por falta de informação que favorecem o acontecimento.”
Outro inconformismo de Racy é dirigido ao descaso e à omissão do Estado brasileiro quanto à questão da segurança no trânsito. Há 37 anos trabalhando em prol da diminuição dos “acidentes”, em postos importantes como a presidência da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego), o médico viu o Código de Trânsito nascer e tem testemunhado de perto os problemas que a não obediência a esse mesmo código vem trazendo ao país.
Mas Fabio Racy não desanima. Hoje é presidente do Cedatt (Conselho Estadual para a Diminuição dos Acidentes de Trânsito e Transportes), um órgão consultivo de aconselhamento e assessoramento ao governo do Estado de São Paulo para as questões relativas à prevenção e à diminuição de acidentes de trânsito urbano e rodoviário. Esse conselho, que se reúne uma vez por mês para discutir e propor ideias ao governo, tem o CESVI BRASIL entre seus participantes. E busca uma saída para uma calamidade nacional que não pode continuar sendo encarada como “coisas da vida”. Só quem teve alguém da família vitimado pela violência do trânsito sabe que um termo melhor que “acidente” seria “tragédia”. Uma tragédia que, por incrível que pareça, tem tudo para ser evitada.

REVISTA CESVI – Como surgiu o Cedatt?
FABIO RACY – O Cedatt nasceu de uma vontade da Abramet de ter mais uma oportunidade de trabalhar em favor do Código de Trânsito Brasileiro em São Paulo. Isso porque o CTB não contempla as características de cada Estado, sendo que cada lugar tem seus próprios problemas e particularidades. Com uma postura política forte, pedimos em 2004 que o governador Geraldo Alckmin criasse esse conselho, que é formado por secretarias de governo, entidades governamentais e pela sociedade civil organizada. Ao longo de todo esse tempo, o Cedatt vem se reunindo e fazendo proposições que, na opinião do conselho, diminuiriam o número de acidentes. Nós nos reunimos uma vez por mês, nas terceiras quartas-feiras do mês. 

REVISTA CESVI – As pessoas se interessam em participar de um conselho voltado para a segurança no trânsito?
FABIO RACY – Muito. Cada vez mais, pessoas de diferentes setores mostram interesse em participar, seja por uma real vontade de contribuir para a questão, seja até para formar currículo e criar contatos, porque lá é um lugar de relacionamento de pessoas que estão no mesmo setor. No Cedatt você conversa com convertidos, porque não há ninguém no conselho que não defenda a segurança no trânsito. E a ideia é essa mesmo, há cabeças brilhantes no conselho, pessoas por quem eu tenho profunda admiração, e citar alguns não ficaria bem porque eu poderia esquecer um ou outro, mas são pessoas que vivem e trabalham pelo bem do trânsito há muito tempo. 

REVISTA CESVI – Como é a receptividade do governo do Estado para as propostas do conselho?
FABIO RACY – Fazemos várias sugestões de ações pela segurança no trânsito, e o governo aceita algumas, enquanto outras adormecem em função do Estado ser uma coisa paquidérmica que, para andar, precisa atender a uma série de interesses envolvidos. Com a criação do Movimento Paulista de Segurança no Trânsito, pelo governo do Estado, seus organizadores solicitaram ao Cedatt que fizesse a parte de aconselhamento do que esse programa deveria fazer. Nós elencamos mais de 120 ações, projetos nossos que ficaram à disposição deles. Até porque nós não executamos projetos, o Cedatt é um órgão exclusivamente consultivo. E posso dizer que recebemos um carinho muito grande do governador, que dedica uma atenção muito especial às nossas solicitações, os frutos do que discutimos dentro do Cedatt. 

REVISTA CESVI – Como vê o país em relação à meta estabelecida pela ONU, de reduzir os acidentes em 50% até 2020, associada à Década de Ação pela Segurança no Trânsito?
FABIO RACY – Como todos veem. E o que nós vemos é muito triste. Eu sou médico, formado pela Escola Paulista de Medicina, e, para se ter uma ideia, a formação em Medicina exige seis anos de estudo, depois mais três de residência, e a realidade é esta: hoje, o que o médico aprende no primeiro ou no segundo ano da faculdade já está ultrapassado quando ele chega ao sexto ano. Isso porque a tecnologia traz para o mundo uma revolução muito rápida, as inovações são muito evidentes e acabam mudando tudo em todos os setores. Menos no trânsito brasileiro. Aqui fica aquela mesmice de dizer que existe um código muito bom, mas que não é realizado. Por exemplo, a parte de educação de trânsito é uma obrigação que está no código, e não se consegue colocar na grade das escolas. Se os colégios tivessem adotado isso desde o momento em que o código afirmou que é obrigatório, com certeza não teríamos essa dificuldade toda de reduzir as mortes no trânsito hoje em dia. 

REVISTA CESVI – Você vê alguma maneira de mudar essa situação?
FABIO RACY – Olha, o que move o mundo é o dinheiro, isso é uma realidade. Então, quando você chega para um governador de Estado, um presidente da República, e explica quanto custa um acidente de trânsito, que se ele investir 10% do que ele gasta com o acidente já resolveria o problema do país, aí ele fica interessado. Mas infelizmente são tantas coisas envolvidas que o acidente de trânsito acaba sendo aceito e considerado como uma causa de morte natural. Tenho uma história interessante para contar: um conhecido meu foi ao enterro de um amigo, que morreu subitamente. Ele perguntou o que tinha acontecido para acontecer aquela morte inesperada, e disseram que tinha sido um acidente de trânsito. Mas, depois de um tempo de velório, um outro amigo da família puxou esse meu conhecido e disse o seguinte: não foi acidente de trânsito, foi suicídio. Mas suicídio é uma coisa muito triste para falar para as pessoas, enquanto acidente de trânsito a gente sabe que acontece. Melhor falar que foi acidente, como se fosse algo natural da vida, e não uma tragédia. Só que não deveria ser assim, o próprio termo “acidente” é inadequado. Porque todas as causas envolvidas com uma fatalidade no trânsito são evitáveis e podem ser prevenidas. Então não é acidente. É realmente difícil entender o descaso diante de uma situação tão evidente, com os acidentes matando tanta gente, custando tanto para o Brasil, e não se toma uma atitude concreta. 

REVISTA CESVI – Vê algo de positivo nos últimos anos quanto à segurança no trânsito do país?
FABIO RACY – A única coisa positiva foi a Lei Seca. O ex-presidente Lula criou o Comitê Nacional de Mobilização pela Saúde, Segurança e Paz no Trânsito. Esse comitê era formado por ministérios, e numa primeira reunião eles entenderam que precisavam convidar outras entidades para participar. A Abramet foi convidada, na época eu era o presidente da associação e participei. Foi então levantada a discussão sobre a quantidade permitida de álcool no sangue, algo que esse comitê queria mudar. Na época era 0,6 miligrama por litro de ar constatado no bafômetro, o Ministério da Saúde defendia o 0,3, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas defendia 0,8 (o que parece piada, um pessoal antidrogas defender um valor maior), e a Abramet defendia a tolerância zero. No momento de explanação das razões de cada um, acho que eu estava inspirado, apresentei algumas fotografias de pais lamentando a morte de uma filha provocada por um acidente com motorista alcoolizado, e falei da razão de não existir quantidade segura, já que o álcool influencia pessoas diferentes de maneiras diferentes. Aí, o deputado Hugo Leal, que foi sempre um grande parceiro da gente e estava lá representando o Legislativo nesse conselho, decidiu abraçar a ideia e fez com que ela se transformasse na famosa Lei Seca. 

REVISTA CESVI – Qual a sua opinião sobre esse aumento dos limites de velocidade máxima nas marginais de São Paulo estabelecido pelo prefeito João Doria?
FABIO RACY – É uma aberração. A grande maioria das pessoas que participam do Cedatt tem uma obstinação pela segurança no trânsito. E essa medida da prefeitura incomodou demais a todos nós. Não há entidade ou órgão envolvido com a questão que aceite nenhum quilômetro por hora a mais. Não pode, está errado, não tem explicação, não tem razão de ser. Quanto de diferença no tempo de um deslocamento isso vai dar? O que é isso perto de uma vida perdida? O João Doria criou essa ideia do “acelera, São Paulo”, e com esse conceito veio esse absurdo. Mas ele sabe o que está fazendo, porque foi falado, foi aconselhado a não aumentar, e eu acho que o prefeito poderia ter a dignidade de reconhecer um erro. Já há estatísticas de pessoas que morreram por causa desse aumento da velocidade permitida, mas é preferível reconhecer o erro da medida, mesmo que não seja mais possível salvar essas vidas, do que ficar criando mais tragédias.

REVISTA CESVI – Acha que o risco relacionado às motos, que lideram as fatalidades identificadas pelo DPVAT, tem solução?
FABIO RACY – Os poucos políticos que tentam fazer algo pelo segurança no trânsito estão com um foco especial dirigido à moto, não tanto pela própria morte do ocupante, mas pelo custo que isso dá ao Sistema Único de Saúde. Tanto que eles querem penalizar o motoboy ou a empresa do motoboy se ele sofre um acidente. É aprender pela dor. O motoboy tem essa necessidade de andar rapidamente, mas, se colocar essa diferença de tempo no papel, vai dar dois, três minutos... Mais uma vez, é a educação que falta. Se ele for conscientizado de que a correria não faz muita diferença no tempo total dos seus deslocamentos, vai repensar a necessidade de colocar em risco a própria vida e a dos outros. 

REVISTA CESVI – E a relação da bicicleta com o trânsito, como você vê?
FABIO RACY – As cidades que funcionam bem com as bicicletas incluídas no trânsito estão em países mais educados, nos quais os cidadãos têm um sentido de responsabilidade mais aguçado do que a gente tem. A bicicleta é um veículo de transporte válido como qualquer outro. Os motoristas de carros, caminhões e ônibus precisam se conscientizar de que os ciclistas, assim como os pedestres, são a parte mais frágil do trânsito. Por outro lado, o próprio ciclista tem de saber se comportar na rua, precisa respeitar a sinalização, a mão da via, o semáforo. Tudo é um processo educativo. 

REVISTA CESVI – Está otimista quanto ao futuro da segurança no trânsito brasileiro?
FABIO RACY – A segurança no Brasil precisa acompanhar as possibilidades que a evolução das tecnologias oferece para a gente. Hoje, é muito preocupante identificar uma situação de tantas mortes quando se sabe que há uma oferta cada vez mais abundante de tecnologias surpreendentes para essa segurança dar certo. Há países nos quais você entra na rua e o acelerador do carro não permite que você ultrapasse o limite máximo daquela via. É o sistema que limita. A vinda dos carros autônomos também é inevitável e a ideia é que em 2050 já tenha uma frota de quase 60% de carros autônomos, com tecnologias antibatida. Sou otimista em relação a isso, uma realidade que vocês, mais jovens que eu, vão poder testemunhar. Basta não andar de moto que vocês chegam lá. 
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